sábado, 14 de novembro de 2009
O próximo futuro e a crise. Há crise?
O próximo futuro e a crise. Há crise?
Durante dois dias aconteceu algo muito raro, ou quase inédito: centros de investigação de diversas áreas discutiram, conjuntamente, a crise no âmbito de um futuro próximo. Ou de um presente, às vezes desconhecido. A ideia de promover um workshop, e não um colóquio, é muito interessante porque só assim, a ouvir e trocar ideias uns com os outros, é que se pode produzir teoria. Da literatura à economia, da gestão à antropologia, à sociologia, às ciências políticas, às ciências da comunicação… cada um, na sua especificidade, reflectiu sobre a crise e todos chegaram quase a uma mesma conclusão: ela existe. Estamos, de facto, em crise. (talvez uma crise crónica): da moral, dos saberes, da tecnologia, ou dos seus usos, da economia e da saúde do mundo em geral. Como foi referido algumas vezes, o conceito de crise aparece na medicina para designar um momento crucial da doença, e do doente. Aquele ponto de não retorno: ou cura ou morte. E se queremos um futuro, próximo ou distante, é necessário pensar rapidamente na cura possível. Mesmo que esta cura passe por tomarmos consciência de que há que se rever conceitos, modelos, vivências. Há que se reconhecer, uma vez mais, a falência do projecto da modernidade e há que se buscar algo que o substitua. Volta-se a falar de civilização, já que de cultura se fala há demasiado tempo e parece que a própria palavra, de tanto ser repetida, deixou de fazer sentido. Para quase todos é disto que se trata: recuperar o sentido. Um sentido. Os sentidos. Voltar a encher os conceitos de objectos, sair do estado encantatório das teorias perfeitas, as quais tentam ajustar o mundo, e olhar, efectivamente, para o mundo. Como o grande cientista do século XIX, Louis Agassiz, tentou mostrar a um estudante que deveria fazer um trabalho sobre o peixe-lua. O estudante trouxe, no primeiro dia, um grande tratado enciclopédico e bem fundamentado sobre o peixe. Agassiz devolve o trabalho e diz que ele deve olhar para o peixe antes de olhar para o que se disse sobre ele. Depois de muitas tentativas e com o peixe já apodrecido, o aluno percebeu o que deveria fazer. E pôde escrever sobre o peixe-lua, que ele agora, finalmente, conhecia.
Entre apocalípticos e integrados, houve, nestes dois dias, um desejo genuíno de olhar para as coisas, de voltar vezes sem conta a debruçar-se sobre elas e tentar compreendê-las. Deixar que as coisas falassem. Ouvi-las. E ouvir os outros, que têm discursos dissonantes, divergentes, discursos outros que podem ser enriquecedores, enriquecidos, combinados. Faltou no entanto a presença de um outro, que é a base do projecto próximo futuro. O outro não-europeu. O outro cujos conceitos que se criam para entendê-los nunca serão suficientes. O outro cuja alteridade assusta. Mas o outro ausente deverá aparecer nos próximos encontros. A sua presença tornar-se-á necessária. Porque, a pouco-e-pouco, vai se percebendo que os modelos que falharam foram aqueles onde os outros não tiveram vez nem voz. E creio que um futuro desejável só será possível se, finalmente, nos dermos conta de que nós também somos o outro. E descendo do pedestal dos modelos civilizacionais e académicos, olharmos para aqueles que achamos ser o outro como alguém que também faz parte de nós.
Miriam Tavares
CIAC - Centro de Investigação em Arte e Comunicação (Universidade do Algarve)
Imagem: Der Held mit dem Flügel (The Hero with the Wing) from the series Inventions (Inventionen)
Paul Klee (German, born Switzerland. 1879-1940)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Olhar, efectivamente, o mundo e o outro, foi algo que, lamentavelmente, Louis Agassiz não soube fazer. Ele, que tão bem olhou os peixes, foi um dos pioneiros das teorias racistas que emergiram na segunda metade do séc. XIX, na sua incapacidade de encontrar no homem mestiço o outro, mas sim um ser inferior resultante do cruzamento do branco, do negro e do índio, em suma, uma subespécie..
ResponderEliminarse pensarmos no que se produziu sobre o homem, o outro, ao longo dos séculos, veremos que há muitos reparos a fazer. não precisamos olhar os homens como Agassiz ou qualquer outro tenha feito, era apenas um exemplo. precisamos olhar o outro, talvez como ele tenha olhado os peixes, quem sabe.
ResponderEliminarMirian Tavares,
ResponderEliminaré ainda partindo do princípio que o que importa é ouvir todas as vozes, mesmo as dissonantes, que acrescento algumas palavras ao que escrevi anteriormente.
Gostei de ler o seu texto e de lhe encontrar sentido(s), não gostei da escolha do episódio do peixe-lua para o ilustrar, porque, a meu ver, o fragiliza. No contexto em que foi citado Agassiz, não é possível admirar o cientista e ignorar o homem e as suas crenças, e, assim sendo, a mensagem positiva que é suposto o episódio transmitir não encontra eco nem serve o propósito.
Em tudo o mais, a minha voz acompanha a sua. Olhemos, sim, o Outro.
Obrigada pela sua leitura atenta e pertinente! A Teresa tem razão, não faz muito sentido citar um cientista que olhou melhor para os peixes que para os homens. Na verdade gosto desta citação do Agassiz, apesar dele. Quem me deu a conhecer foi um grande homem, também ele preconceituoso e com uma visão complicada da política, Ezra Pound. Creio que cientistas e humanistas muito têm a aprender sobre os outros, porque a maioria dos discursos que se fazem ouvir provêm de um espaço circunscrito onde os outros serão sempre outros- objectos de um discurso ora preconceituoso, ora paternalista. Acho que toda a ciência deve começar a pensar melhor tanta coisa. e por isso creio que os workhops podem ser um pequeno passo. E uma vez mais, obrigada pelo seu apontamento!
ResponderEliminarReflectir sobre o que nos inquieta e apaixona é um exercício particularmente estimulante. É a minha vez de agradecer à Mirian pelo facto de mo ter proporcionado e, seguramente, a tantos outros que não puderam estar presentes no workshop.
ResponderEliminar