sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Bujumbura


Contaram-me que, em Bujumbura, durante um dos vários conflitos, em que a cidade está deserta mas há olhares à espreita, viam-se os hipopótamos a sair do lago e a passear pelas ruas da cidade…

Bujumbura é uma cidade entre lago e montanha, situada na região dos Grandes Lagos, na ponta norte do Tanganica. Para ela vão convergindo as verdes colinas do Burundi.

O centro da cidade preenche-se diariamente com gentes vindas dessas “colinas” (zonas rurais). Mas a cidade mantém um movimento fluído, com congestionamentos apenas a certas horas do dia e nas proximidades do alarido do mercado. Táxis azuis e brancos, carros, camiões, e motos preenchem o tráfego por entre as constantes bicicletas, que, de tudo, transportam um pouco. É uma cidade funcional e ordenada, de fácil orientação, diferente da confusão de muitas capitais africanas. Com um centro pequeno, composto por casas e prédios baixos, ao estilo da colonização belga, cada serviço, loja ou barraca improvisada tem a sua função e os seus clientes. Não faltam também os cibercafés que ao longo do dia se vão enchendo de jovens. Aqui servem-se refeições para além de se poder tomar o saboroso café do Burundi.

Apesar do calor húmido, a curiosidade obriga a caminhar. Percorre-se discretamente as ruas, de dia e de noite, com uma sensação de segurança que se consegue em poucas cidades. A pobreza vai-se misturando com os passeios e é a cada ano mais saliente, pela quantidade de gente descalça ou de aspecto desnutrido.

A cidade é um convívio discreto de vários mundos, com um estar disciplinado que a mantém activa na azáfama dos dias.


Hutus e Tutsis vivem agora mais uma fase de reconciliação. Um dia-a-dia de luta com as tensões do passado e ainda algum medo de repressões. Mas isso não se percebe à primeira. Não se fala, pela discrição e receio de que o passado possa contagiar o futuro. A história foi conflituosa e dela não pode haver orgulho.

E Bujumbura é ficar a olhar para as pessoas e tentar perceber de que falam os rostos que sentiram o genocídio, sem identificar um Hutu ou um Tutsi.

Mas o quotidiano flui, a beleza do lugar e a simpatia das gentes distrai-nos.


No fim-de-semana à beira do lago ou junto às praias com areia, as famílias vão-se refrescar e conviver. Facilmente assistem a um ensaio ou espectáculo dos famosos drums (batuques) do Burundi, a beber uma Amstel e a petiscar ndagalas (pequenos peixes fritos do lago).

Mas Bujumbura também é, ficar à beira do Tanganica a fazer parte da variação dos tons de luz, entre o lago e as montanhas do Congo à sua frente. E assistir em silêncio à saudação dos hipopótamos, que ao fim de tarde continuam a aparecer, agora sem se aproximarem da cidade.

Sandra Ferreira
Consultora cooperação e desenvolvimento

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Doris Salcedo



Doris Salcedo (1958), Bogotá. Colômbia

Emigrações



Também se emigra do paraíso.

Santiago do Chile


Quando se dobra a rua Namur é uma manada de elefantes que encontramos pela frente. Santiago do Chile é uma cidade improvável. Nas noites quentes de Janeiro as buganvílias coloridas emaranham-se pelas fachadas em mármore das Vilas com portões de aço bordados há cem anos. A cidade tem pátios, jardins, cantos com cafés onde famílias inteiras comem "empanadas", e os adultos bebem vinho chileno e as crianças sumos de anona e de morango ou saboreiam sorvetes de muitos sabores. No Emporio La Rosa e em letras cor de rosa está escrito nas lousas penduradas nas paredes: le ofrece, e depois a verde, frescas ensaladas, deliciosos sandwichs, jugos naturales, bebidas, - café.

Qué lindo!

Em Santiago, as estações do ano ainda são quatro e a cidade muda em cada uma delas. No Inverno, quando a Cordilheira desaparece no meio das nuvens baixas, a cidade fica fria e sem imaginação. No Verão é libertária, pública, quente e nas suas memórias atropelam-se revoluções, projectos, fantasias, cartazes de rua, teatros… Santiago é uma cobra serpenteando ao longo de 32 Km, esgueirando-se entre a Cordilheira e o mar; é uma espinha bordada de abacates e de milhares de brinquedos estendidos nos passeios pelos vendedores ambulantes.



Os Santiguinos gostam muito de teatro e as salas enchem-se. Santiago é uma cidade de actores, alguns muito jovens com as mãos muito coladas ao lado do corpo, e outros mais velhos, eternos, que representam desde antes da Ditadura, durante a Ditadura e continuam a fazê-lo na Democracia. Representam e agradecem com a gratidão de sempre, gostam das palmas de sempre e agradecem sempre com uma flexão com as mãos juntas e serenas e saem depois pela direita alta, numa sala de teatro inventada em plena Assembleia Nacional.

O cinema dos Santiguinos tem muito mar - o mar do Norte e o mar do Sul - vento, famílias reunidas em casas nas dunas ou jovens de camisolas de lã olhando para lá do mar.

Os Santiaguinos são patriotas e acreditam no futuro e gostam com orgulho da sua cidade, gostam muito dela no Inverno e em todas as estações.



No bairro Providencia há muitos Bancos e centros comerciais dos anos 70 em forma de caracol. No Bellverde há ateliers de artistas e as casas são de cores garridas. No bairro das Bellas Artes pode ler-se Álvaro de Campos nos tampos das mesas.

Em Santiago, os homens andam muito velozes nas ruas ou perfilam-se em seus fatos escuros nas estações de metro. Acautelam-se com as mulheres com seus peitos altos destemidos.

Santiago é uma cidade melancólica sim, com os seus antiquários, alfarrabistas, toalhas de linho engomadas a rigor, arquitectos-urbanistas utópicos e novelistas secretos.

Santiago é a capital e maior cidade do Chile, tem 641.4 km² e uma população de 5 428 590 pessoas

apr

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Bissau


Outubro de 2009. Ao fim de 3 ou 4 tentativas, nos últimos 2 anos, para me deslocar a Bissau, finalmente tinha conseguido. Enorme expectativa por um país que, embora desconhecido, me parecia conhecer desde há muito.
Uma história rica, como é a de toda a África, e uma enorme diversidade étnica para um país de pouco mais de 35 mil Km2 e uma população da ordem dos 1,5 a 1,6 milhões de habitantes.

Mas, afinal, o que me esperava em Bissau agora que a acalmia política parece ter chegado?

O avião está repleto, de gentes e sacos, e são várias as línguas e dicções que se ouvem. Chegada ao Aeroporto de Bissau, de madrugada e com muito calor, alguma ordem nas filas dos passaportes, uma grande sala de desembarque e muito menos confusão do que eu alguma vez esperava.

Em pouco mais de 2 horas chegamos a uma residencial - ou será hotel? -, com um traço das misturas que Portugal foi tecendo e desfazendo ao longo dos anos. Senti-me em África e em casa.

Não é apenas a humidade que se entranha no nosso corpo, mas também a diversidade do seu povo, a alegria do Mercado de Bandim – onde tudo se vende – , o desespero dos que aguardam ser atendidos no Hospital Simão Mendes, o olhar distante e sem esperança dos ex-militares que vivem na Fortaleza, guardando o túmulo de Amílcar Cabral, o sorriso rasgado das crianças, vendendo aos copos amendoim e castanha de caju de um tempo sem resposta e perguntando se podem ser nossas amigas...

Afinal, o que se passa aqui? Como se explica a violência que de repente irrompe na cidade e que logo acalma e que parece, dizem, deixar os estrangeiros de fora?

Se falamos das pessoas, o que podemos dizer da arquitectura? Alguns prédios dos finais dos anos 60, inícios dos anos 70 – a modernidade colonial – uns (muito poucos) novos prédios e uma imagem retida: o centro velho de Bissau faz lembrar a velha Havana (a do centro e não a da marginal) com as cores, a estreiteza das ruas, as varandas e as portadas magníficas e lindas do tempo áureo do caju.

Desejo sempre aos meus amigos que visitam Africa pela primeira vez que cheguem num dia de chuva, pois nunca mais esquecerão o cheiro a terra e a vida. Entendi como um presságio de uma boa amizade com aquela cidade, quando, no dia da partida, não só choveu, como eu já não via há muitos anos, como ainda fui “agraciada”, por volta das 10 horas da noite, ao voltar ao hotel para recolher a mala, com um coro de jovens que ensaiava na Sé Catedral cantando com uma imensa alegria festejando – quem sabe – a felicidade de estarem juntos. Em Bissau.

Maria Hermínia Cabral
Economista

Fotografia de Miguel Viveiros

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Dany Laferrière


Este livro estava na lista de espera para ser lido e acontece que acabou por sê-lo exactamente um dia antes do terramoto no Haiti. Este facto não pode deixar de ter um impacto na leitura. Trata-se da obra L'énigme du retour (Prix Médicis 2009 - Grande prémio do livro de Montréal) do haitiano Dany Laferrière (Port-au-Prince, 1953), escritor há muito imigrado no Canadá, onde tem escrito uma obra importante, sendo justamente considerado um dos mais relevantes escritores da diáspora haitiana.

A história parte do anúncio da morte do pai do narrador/autor, acontecimento que o obriga, passados 30 anos, a regressar à sua cidade natal, Port-au-Prince, de onde ambos haviam sido forçados a partir. A narrativa é construída a partir de uma mescla de formatos de textos, que variam entre a forma de versos e textos curtos, muito visuais, espécie de notas de viagem. A leitura deste "caderno de viagens" permite reconstituir toda a viagem: desde a decisão de partir, fazer a mala, recordar os episódios da distante infância, a viagem propriamente dita, com as suas surpresas, vicissitudes, reencontros, decepções. Num trabalho constante de reconstrução da memória, o autor revê as figuras heróicas da infância e da adolescência, o contacto com a escola e a partida. E, finalmente, a nova partida, de regresso ao Norte, à cidade onde agora reside. Do conjunto de textos que, como já se referiu, poderiam constituir todos pequenas "curtas", há alguns que se destacam pela precisão da descrição ou pela singularidade do tema: o sentimento do exilado "que vive sem reflexo no espelho", "o tempo dos livros" e a forma como eles organizam o espaço e a vida em cada nova morada, a vida de bairro na infância, um texto frio sobre a fome, a descrição do vento nas Caraíbas, uma pequena história das artes plásticas nas Caraíbas, etc..

Os relatos de viagem de regresso ao país de origem constituem alguma da melhor literatura africana, sul-americana e caribenha. Os seus autores são grandes escritores que tiveram a experiência do exílio, da diáspora e do sentimento sempre ambíguo entre a nostalgia do país e a dúvida do regresso. Recorde-se a este propósito esse texto maior da literatura das Caraíbas que é Cahier d'un retour au pays natal (1939), de Aimé Césaire, texto que é, aliás, fundador do movimento da Negritude.

O que chega a ser perturbante neste momento e na conclusão desta leitura, é imaginar que para Laferrière, a sua cidade revisitada, Port-au-Prince, já não existe. Destruída, não lhe restará mais do que apenas a recordação da infância e a ilusão do seu reencontro, breve e momentâneo.

Dany Laferrière, L'énigme du retour. Paris: Grasset, 2009

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Asmara

Pelas 6:30 da manhã, grupos de mulheres de rostos emoldurados por cândidos véus brancos de 5 metros de comprimento, o nezelá, e o corpo envolto pela tradicional zuria, a longa túnica branca até aos pés, percorrem a ainda ensonada Asmara em direcção à igreja católica ou ortodoxa, saudando os praticantes islâmicos que já abandonam as suas mesquitas. Inicia assim o dia de Asmara, capital da Eritreia, e desenrola-se numa sucessão de ritos e cerimónias recorrentes, um atrás do outro, até ser noite.



O simples gesto de tomar um café é uma autêntica função, verdadeira encenação, cheia de gestos antigos e sábios, que começa com a torra dos grãos no fornello e termina quando se toma a terceira chávena deste café doce e condimentado, sempre único, acompanhado de pipocas, tagarelices e incenso. A Eritreia debruça-se sobre o Mar Vermelho e a sua longa costa, especialmente a parte desértica, é um dos lugares mais quentes do mundo. A capital, por sua vez, construída a 2.400 metro de altura, goza de um clima ideal e de um céu azul sempre garantido.

Asmara é uma cidade para passear, para descobrir lentamente, em cada detalhe. A criatividade dos arquitectos italianos que no início do século XX construíram casas e palácios, ruas e praças, em perfeito estilo decò italiano, cubismo, expressionismo, racionalismo, e o cuidado, o orgulho e a hospitalidade dos seus habitantes, os asmarini, tornam-na um lugar agradável, limpo e seguro onde se demora em doce vagabundagem. Parques com fontes e jardins oferecem, a residentes e visitantes, o repouso à sombra de exuberantes buganvílias, jacarandás e jasmins, e ali podem, quem sabe, saborear um sumo fresco de zeitun.

Se cada cidade tem um lugar que fascina e onde nunca nos cansamos de voltar, aqui esse lugar é, como nenhum outro, o Medeber: o reino da transformação, da reutilização, hoje diríamos da reciclagem, de qualquer desperdício. É a incansável fabrica das mil actividades artesanais, que faz surgir de entre ferragens utensílios diversos, camas, cruzes, cadeiras, e até o ruído de serras, plainas e martelos se transforma em melodia nesta incrível oficina a céu aberto.

Chegada a noite, às 18:00, a cidade pára, todos os que circulam na artéria principal, a Independence Avenue, se imobilizam por um minuto, em respeito ao arrear da bandeira nacional que é assim honrada e que representa o sacrifício e a determinação de um povo que escolheu a liberdade. É hora de jantar, a cidade esvazia-se mas os seus numerosos restaurantes que servem injera animam-se.



A refeição é o enésimo momento de convívio, e também este segue um ritual complexo mas harmónico. Sentamo-nos no chão, sobre um tapete ou uma esteira de palha e repartimos um prato situado ao centro. A injera, prato tradicional eritreu, é um disco de pao esponjoso, de sabor ácido delicioso, que se serve com uma selecção rica de acompanhamentos de verdura ou carne. Come-se rigorosamente e apenas com a mão direita, o que requer uma certa habilidade e, não raramente, um dos amigos comensais decide preparar um pedaço particularmente saboroso e dar-nos à boca. É um gesto de grande respeito e que pode ser repetido duas vezes. O zighini é o acompanhamento por excelência: um estufado de carne de vitela, borrego ou frango, cozinhado num refogado de cebola e tomate, polvilhado com uma generosa mão cheia de berberé, a picantíssima mistura de especiarias

É por isto, e por mil outras razões, que um dia passado em Asmara nos deixa de “boca aberta”


Silvia Bottone
Funcionária da UE

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Notas sobre o teatro no Chile e na Argentina

Durante os anos em que Michelle Bachelet presidiu ao governo do Chile (2006-2009), as áreas social e cultural do país tiveram apoios e políticas de reconhecimento e de desenvolvimento inéditas, mesmo pensando a uma escala mundial. No que diz respeito à cultura, o sector foi profundamente estudado e estruturado, hierarquizando-se prioridades e colocando-se em cargos de responsabilidade e de decisão uma nova geração de quadros - nascida no início dos anos 1970 -, o que produziu uma renovação saudável do sector, de que hoje se sentem as boas consequências.Uma das área a merecer uma especial atenção foi a do teatro, a que não terá sido alheio o facto de ser esta uma arte tradicionalmente de grande qualidade e tradição no Chile, e de a ministra da cultura ser uma actriz. No processo de estruturação do sector teatral muitas foram as salas recuperadas e equipadas, consolidando-se a sua programação. São centenas as que existem pelo país, das quais, algumas dezenas em Santiago, com públicos muito participantes e activos e muito diferenciados na sua “filiação” tribal.

O teatro chileno é, a par, do teatro argentino, um dos melhores do espectro latino-americano, tendo inclusivamente criado uma técnica vocal que lhe é particular. O teatro chileno é maioritariamente um teatro de palavra e de texto, assenta na performance dos actores e na qualidade da encenação, com pouco investimento em maneirismos cenográficos. A importância e a prevalência do texto é de tal ordem, que nos concursos anuais de dramaturgia chegam a concorrer 250 textos (2009), 60% dos quais originários de fora da capital É um teatro que vive ainda muito da revisitação à história política recente do Chile. Mas as suas abordagens podem ser de uma sofisticação ímpar. Um dos melhores exemplos é a obra "Neva", encenada por Guillermo Calderón, que é provavelmente a melhor peça estreada na América do Sul no ano passado. Num "ringue" de 4 m2, três actores representam o dia seguinte à morte de Tchekov, com incursões às obras do dramaturgo russo. É um teatro feito apenas sobre a qualidade da interpretação de excelentes actores e com uma dramaturgia e encenação de uma inteligência rara. Actualmente, os dois festivais de teatro de referência são o Festival Internacional de Teatro Santiago a Mil (FITAM), sediado em Santiago (www.santiagoamil.cl) e o mais recente Festival Cielos del Infinito (www.festivalcielosdelinfinito.cl) que acontece desde 2008 na cidade mais ao sul do continente sul-americano, Punta Arenas, já na região do Chile Antárctico.

Na Argentina, ao contrário das recentes políticas culturais no Chile, as artes de uma forma geral e o teatro, em particular, não têm tido qualquer apoio por parte do governo. Mesmo assim, o teatro é uma actividade pulsional deste país, em particular em Buenos Aires onde, apesar da crise, em alguns fins-de-semana chegam a estrear-se 30 peças. Os locais são maioritariamente lugares alternativos, como apartamentos e associações, já que a maioria dos teatros da cidade foram privatizados e apresentam sucedâneos da Broadway ou do teatro espanhol comercial. A propósito da situação do teatro na Argentina contou o actor e encenador Marcelo Mininno uma história da sua infância. Vivendo com a sua avó numa região rural, assistiu um dia a uma enorme trovoada. Ao espreitar pela janela, viu a avó deitar sal no chão, em movimentos de cruz, de cada vez que trovejava. Passado algum tempo a avó entrou em casa e dirigindo-se ao neto com um ar peremptório, disse-lhe: a trovoada vai acabar. O comentário do actor foi: “como vêem há muito bom teatro na Argentina”.

apr

Mindelo

Situada na ilha de S. Vicente de Cabo Verde, a cidade tem cerca de 63.000 habitantes, dos quais 65,7% com menos de 30 anos e uma taxa de desemprego que ronda os 23.3% (dados do censo de 2000)


Mindelo tem um Clube de Golfe, que se situa às portas da cidade num vasto terreno de terra batida, pontuado pelo verde poeirento das acácias. Em 1920 chamava-se St. Vincent Golf Club, em 1969 passou a Club Anglo-Português e em 1975 Clube de Golfe de S. Vicente. Improvável alegoria de Mindelo, este clube sintetiza a história e o carácter da cidade e da ilha.

Apesar de S. Vicente ter um porto natural e uma posição estratégica excepcionais, praticamente não tem água, pelo que as várias tentativas de povoamento feitas a partir de finais de setecentos, bem como a decisão régia de mudar a capital para esta ilha em 1838, falharam. Foi a instalação das primeiras companhias inglesas de carvão a partir de 1850, que abriu a ilha à navegação internacional e viabilizou a então pequena aldeia de pescadores. Nesse tempo do carvão, os ingleses imprimiram à cidade uma forma de viver mais moderna, com casas mais confortáveis e higiénicas, novos hábitos alimentares e de trabalho e novas práticas desportivas como o golfe, o críquete, o ténis e o futebol. Uma influência que não se explica pelo número de residentes, que nunca foi muito elevado, nem pelo facto de por duas vezes no século XIX, aqui ter havido concentração de tropas inglesas, primeiro devido ao conflito com os Ashanti na zona do Gana e mais tarde, por causa da guerra anglo-boer na África do Sul. Na verdade os mindelenses nunca foram admitidos nos clubes ou actividades inglesas, mas observavam com curiosidade as excentricidades e novidades que chegavam, assimilando o que lhes agradava e deixando de lado o que não se coadunava com os seus gostos e maneira de ser.

Entretanto a cidade continuava a debater-se com o problema da falta de água, que nem o recurso aos poços, à canalização de nascentes do interior da ilha, ou à água que um pequeno vapor transportava diariamente da ilha vizinha de S.to Antão conseguiam resolver, até que em 1966 se dá finalmente início à dessalinização da água do mar. Pior que sobreviver à falta de água foi, contudo, sobreviver às crises provocadas pela falta de navios que erros da administração portuguesa e novas técnicas e rotas da navegação, ajudaram a afugentar.

Apesar da história de Mindelo ser uma impressionante sucessão de crises, a cidade sobreviveu e cresceu e foi até, durante alguns anos, a principal fonte de receitas e sustento do arquipélago. É verdade que os grandes navios ainda não voltaram, as crises e o desemprego continuam a maltratar a cidade e uma ou outra avaria no dessalinizador relembram-nos que a ilha não tem água, mas este povo tem alma de cigarra e sobrevive tenazmente aos dias difíceis e às lições de moral das formigas. Mindelo é uma cidade colorida, musical e alegre, virada para as tranquilas águas azuis da Baía do Porto Grande e às portas da cidade, lá onde começa o deserto, todos os fins de semana, mesmo quando o vento levanta nuvens de pó, dezenas de desportistas jogam no chão castanho avermelhado do seu campo de golfe, antes de um gin-tonic na velha sede do clube.

Ana Cordeiro

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Piratas



Pirataria literária no Peru, aqui

As a cultural artifact, the book has undeniable power, and the idea of a poor, developing country with a robust informal publishing industry is, on some level, romantic: the pirate as cultural entrepreneur, a Robin Hood figure, stealing from elitist multinational publishers and taking books to the people. The myth is seductive, and repeated often. In a country where a new book can cost 20% of the average workers’ weekly wage, it’s worth asking who could afford to read if it weren’t for pirates?

in Guardian

Cairo


População: 20 milhões de habitantes

Passear no Cairo é uma experiência ímpar. Temos a sensação de que nos vamos perder no meio da população compacta a qualquer momento. Chegámos nos dias em que decorreu a ultima celebração religiosa do ano, as famílias reuniram-se para os festejos, a multidão tornou-se muito maior.

Caminhamos nas amplas ruas do centro do Cairo, a parte moderna da cidade. Não é uma zona bonita, mas é para onde convergem as principais ruas que imprimem o cunho europeísta que a cidade sofreu. No pouco espaço livre nos passeios, cruzamo-nos com vendedores ambulantes de doces e de batata-doce assada. Os cheiros adocicados flutuam no ar.



Entre as principais avenidas, destaca-se Corniche el Nil, junto ao Nilo. Nunca estive num sítio com tanta gente, famílias completas percorrem a avenida, grupos de jovens passeiam descontraídos e animados. Homens caminham de mãos dadas discutindo fervorosamente. Os cairotas são simpáticos, sorriem alegremente, os adolescentes arriscam um divertido “hallô” às ocidentais. No rio indolente os numerosos barcos, decorados com iluminações que lembram os nossos “carros de choques” garantem uma amálgama de cores na água.

O trânsito é simplesmente caótico, centenas de viaturas circulam pelas avenidas, misturados entre charretes e carroças puxadas por burros. É raro ver um carro que não esteja danificado, o barulho das buzinas é ensurdecedor.

Do cimo da Cidadela, fortaleza medieval que domina a cidade, fundada pelo lendário Saladino, temos uma das mais impressionantes vistas sobre a cidade. O Cairo não tem fim, é imenso. A cor, definitivamente é o ocre. Revela-se a floresta de minaretes e cúpulas que povoam a metrópole, os chamamentos dos imans cruzam-se no ar.

Descemos e dirigimo-nos para o Cairo islâmico. A primeira paragem é na mesquita de Al-Azhar, fundada pelos fatimidas em 970 é uma das mais antigas e emblemáticas. È igualmente um dos mais importantes centros de estudos islâmicos. Somos obrigadas a entrar de véu, é uma emoção muito forte. Lá dentro reza-se e estuda-se, os devotos são de todas as partes do planeta, temos o mundo à nossa frente.

De seguida vamos para um dos mais bazares do Médio Oriente, Khan al-Khalili. São centenas de lojas coloridas minúsculas, cortadas por ruas estreitas, onde tudo se vende. O barulho é indescritível, aliás, toda a cidade é barulhenta, o som da música é persistente. No meio das ruas descobrimos finalmente o mais emblemático café do bazar. Fishawi’s tem mais de duzentos anos, o café prolonga-se pela rua com os seus espelhos e cadeirões. É extremamente acolhedor e simpático, ocidentais e cairotas confraternizam entusiasticamente. Bebemos sumos de frutas aromatizados com especiarias, fuma-se a tradicional Sheesha. Ouvimos novamente o mais simpático piropo que se pode dizer a uma ocidental “you walk like an egyptian”.

Isabel Ricardo
Arqueóloga

Fotografia de Catarina Cordas

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Literatura e o Haiti






Etonnants-Voyageurs, Quand les écrivains redécouvrent le monde

José Edmundo Paz Soldán


Entrevista con el escritor boliviano José Edmundo Paz Soldán sobre la magia, lo virtual y lo real en la literatura latinoamericana, la exploración de la intimidad como recurso político y la generación McOndo. Aqui

Dakar ou o Grande Bazar

Dakar é uma das maiores cidades de África. Percorrer as suas ruas é como meter-se numa grande feira onde não falta animação. Não se faz 1 km sem se ser interceptado por um vendedor, não importa de quê. A cidade é feita de vendedores e, consequentemente, de compradores.

O quadro pictórico da cidade e seus arredores é marcante. É um festival de côr, de barafunda, de trânsito caótico.

Os car-rapide com o seu colorido exuberante servem de transporte aos menos favorecidos, ou seja, grande parte da população local. São um delírio visual, autênticos carrinhos de feira com desenhos e alusões religiosas. Estes car-rapide na sua grande maioria são velhos, com chapa batida, mal cuidados e muito porcos. É o transporte diário possível para os milhares de locais que se empacotam desajeitadamente no seu interior. A nós, europeus, transportam-nos para o reino da fantasia! Vê-los a circular remonta à nossa infância, aos nossos brinquedos de lata!

Será Dakar a cidade com maior número de taxis por m2? Por cada carro devem existir pelo menos três táxis. Detectam-se à distância pela sua côr amarela torrada.

As carroças puxadas por cavalos ou burros são um meio de transporte muito usual para todo o tipo de carga e mesmo pessoas. Emprestam à cidade e arredores um tom ecológico que contrasta com a poluída urbe de Dakar.

Sendo o Senegal um país onde o islamismo predomina, é uma constante em Dakar o canto da chamada dos muezzini apelando à reza.


Dakar é ainda tropeçar nos meninos de rua com as suas malgas amarelas. São os meninos (talibés) que vêm de todo o Senegal aprender o Corão sob a autoridade de um líder espiritual (marobout). Muitos destes mestres do Corão obrigam os seus discípulos a permanecer na rua em condições muito desfavoráveis a praticar a mendicidade. Aparentemente esta mendicidade é um fenómeno singular no Senegal não sendo conhecida esta prática noutros países de cariz muçulmano.



Dakar e toda a sua costa está decorada de pirogas. Há imenso peixe. Nalgumas praias compra-se o peixe acabado de sair do mar, fresquíssimo e a bom preço. O espectáculo é, no mínimo, surrealista, cómico também. É o peixe a chegar nas pirogas, a escolha, as vendas… ao largo as crianças…. as bucólicas ovelhas que estão por todo o lado… as mulheres que amanham o peixe… o cheiro intenso, as moscas… os cães espraiados e esfaimados.

Dakar está em permanente construção, por isso Dakar é sujo, é um Dakar de mil poeiras. Ainda assim Dakar tem uma marginal esplêndida onde nos podemos regozijar com uma vista azul-esverdeada do imenso Atlântico.

Muito mais há a dizer sobre Dakar, difícil é sumariar uma cidade quando há tanta coisa para ver e sentir!

Helena Nunes
Em Dakar desde Outubro de 2009

Fotografia de Fátima Serrão Gomes

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Luís Sepulveda

Luís Sepulveda é um contador de histórias exímio. Faz parte da melhor tradição da cultura da oralidade urbana que nasceu nos cafés de Santiago do Chile, de Buenos Aires e nos botecos do Rio de Janeiro. Há sempre algo de charla na maneira como Sepúlveda tece as suas narrativas, no tempo longo que as suas personagens se permitem ter, personagens que são sempre "figuras" da cidade, na aparente inverosimilhança dos episódios vividos, na sistemática presença de alcunhas, num psicologismo popular. Nesta sua última obra, intitulada "A Sombra do que Fomos", três antigos militantes de esquerda dos tempos da ditadura chilena, hoje sexagenários, decidem, apesar de viverem já num regime democrático, dar o seu último golpe revolucionário. Para tanto, e passados trinta e cinco anos, reunem-se comendo frangos de churrasco num velho armazém nos subúrbios de Santiago. Durante esta reunião discorrem sobre as suas aventuras passadas e sobre o lado tenebroso e mortífero do regime de Pinochet. Ao mesmo tempo, um casal desavindo - ele abandonou a guerrilha e agora passa os dias em casa vendo clássicos do cinema - mata por descuido uma outra personagem, que não era senão um quarto membro do grupo que se lhe juntaria para executar a acção revoluconária. Este episódio acaba por servir para introduzir a tónica de policial, com a entrada na acção de dois detectives - uma jovem e um veterano - que muito humanamente vão resolver o drama. O plano dos três ex-guerrilheiros acaba bem, descobrindo-se, afinal, que tinha sido forjado previamente por um anarquista. Desde o ínicio que as personagens ganham a empatia do leitor, pela candura que transportam e pelo seu idealismo romântico. Mas, atrás desta estória de bons e nostálgicos guerrilheiros, há um aspecto fulcral e profundamente histórico e político. Trata-se, para Sepúlveda, de olhar, estudar e enfrentar o período histórico da Ditadura. O Chile tem feito um esforço importante em tratar esses anos de uma forma histórica e acessível à maioria dos cidadãos, através de centros de documentação, de algum cinema, de muito teatro. Ao ler "A Sombra do que Fomos" percebe-se que todo esse esforço não é, contudo, ainda o suficiente. Até porque este período não está ainda encerrado. Até porque, "dizem que quando os «de cima chegaram», o inspector lia em voz alta o conteúdo de um caderno de contabilidade. Repetia nomes conhecidos, mencionava quantias alarmantes". Assim acaba a novela!


A Sombra do que fomos, trad. de Helena Pitta, Porto Editora, Outubro de 2009

apr

Mohamed Machfar


Mohamed Machfar, um xeique tunisino destaca-se pela sua personalidade de religioso liberal com um discurso moderado capaz de estabelecer pontes entre a religião e as comunidades ocidentais mais seculares. Com um programa de rádio e enchendo a mesquita nos dias das suas preces pode ser contactado no facebook. O link para a sua página, aqui.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Eleições no Chile





Para acompanhar os resultados finais da segunda volta das eleições no Chile, o jornal La Nación está a fazer cobertura permanente, aqui.

Edinburgh (Energia positiva)

Meio atrapalhado, na estação de comboios, sem saber que direcção tomar, mesmo com uma agenda bem traçada e munido de mapas, preferi seguir o meu instinto e guiar-me pela arquitectura que confrontava a minha sensibilidade. Era ainda muito cedo para visitar os museus e galerias que constavam da minha lista, só o poderia fazer mais tarde.

Era domingo, 15 de Novembro de 2009 e fiquei por ali das 8.45h às 18.15h num clima carregado de nuvem cinzenta e frio de 7 graus. Nunca tinha visitado uma cidade grande em tão curto espaço de tempo.

Uma das vias para se sair da estação é uma rampa que termina numa rua ao cimo de uma pequena colina. Ao fundo da rampa podia-se ver um autocarro turístico com 2 pisos, estacionado na perpendicular. Este elemento atraiu a minha atenção e tornou decisiva a tomada de direcção. Ao chegar ao cimo da rua, no cume da colina, apercebo-me de estar mergulhado num “alto mar” arquitectónico que não escaparia nem à visão de um cego mesmo naquele clima cinzento! Uma sincronização de formas e atitudes arquitectónicas desde o Barroco, passando pela Arte nova e pelo Modernismo.

Uma sensação esquisita provocada pelo frio, pela fome e alguma desorientação, tornava-se mais aguda por isso decidi fazer uma pausa estratégica para um café. Lembrei-me da referência de um Mac Donald ali perto de que me falara o meu amigo Mathew. Levantei a cabeça numa tentativa de adivinhar a direcção da sua localização quando deparei com uma rapariga solitária, de traços asiáticos, ar muito descontraído, caminhando na minha direcção como se fosse oferecer-me serviços de guia turística. Não perdi a ocasião e gentilmente pedi-lhe informação sobre a localização do Mac Donald. A resposta dela foi automática, dizendo que não era de Edinburgh e continuou o seu caminho. Eu também.



Uns passos depois oiço uma voz feminina precipitada atrás de mim dizendo: “Sorry gentlemen, do you mean Mac Donald?” Eu também de forma precipitada, virei-me para ela e respondi que sim. Com um sorriso mais simpático que própria simpatia, ela desculpou-se mil vezes com vénias japonesas, como se tivesse feito algo de muito grave, mas sem medo de punição, pelo facto de não ter percebido logo a minha pergunta, argumentando que o seu inglês era fraco. “No, sorry I think mine is worse” - disse eu. Mas outra vez não me entendeu e com o seu jeito atrapalhado e servil, não me deixou dizer nem mais uma palavra e foi andando, apressada, em direcção a um cruzamento convidando-me a segui-la. Chegados à esquina ela apontou um edifício onde facilmente li “Mac Donald”. Numa tentativa de agradecimento, afinando o meu inglês para o sotaque mais britânico possível, convidei-a para tomar um café. Hesitante e até um pouco embaraçada, aceitou.

Ting Fang Hsueh é uma jovem Taiwanesa, estudante de curadoria em Londres, que estava em Edinburgh numa condição parecida com a minha: com o propósito de visitar museus e galerias. Aquele era o seu 3º e último dia, quando a encontrei dirigia-se à estação para regressar a Londres. Ting Fang Hsueh depois de se aperceber desta coincidência de objectivos e de que afinal pertencíamos a uma mesma “tribo profissional”, decidiu adiar a sua viagem para mais tarde e ser minha guia turística na cidade.

Levou-me ao Fruitmarket Gallery, uma galeria de arte contemporânea que mostrava a exposição “The and of the line - atitudes in drawing” bastante interessante e didádica para quem cultiva o desenho. À National Gallery, como todos museus tradicionais, não fiquei impressionado, quadros e esculturas mediavais dominavam o ambiente expositivo. Ao Castelo de Edinburgh, num tour que foi contornando ruas e avenidas sob o fundo de edifícios e estátuas, cruzando com pessoas de toda parte do Mundo, artistas e mendigos performando, lojas vendendo kilts(veste tradicional escocês) e outros objectos tradicionais, atingimos finalmente o centro folclórico de Edimburgh. Cumprimos com os rituais turísticos (tomadas de poses fotográficas, compra de bilhetes e postais de e um cafezinho. Uma atmosfera bastante exótica invadiu-nos ao penetrar a dentro do castelo. Paredes grossas e escuras, muita gente entrando e saindo, um homem ao fundo trajado de kilt tocando um instrumento típico, um canhão do século 18 preparado para disparar e depois a guia oficial conduziu-nos ao grande salão com tecto alto, muito ornamentado e iluminado contrastando completamente o espaço exterior, onde relatou-nos em 5 minutos a historia de Edimburgh.

Edinburgh é a capital escocesa desde 1492 e é a sede do parlamento escocês, desde 1999. Após a unificação do parlamento da Escócia com o da Inglaterra, Edinburgh perdeu sua importância política mas permaneceu um importante centro económico e cultural. Conta com cerca de 448.624 habitantes e é dominada pelo Castelo de Edinburgh construído sob uma rocha de origem vulcânica o que atrai centenas de
turistas. A Universidade de Edinburgh foi pioneira na informática e gerenciamentos.

A curadora e minha guia na aventura rápida de conhecer Edinburgh em menos de 12 horas, tomou notas sobre tudo e mais alguma coisa das nossas conversas. Partiu no comboio das 17h para Londres. Eu parti as 18.15h para Aberdeen esmagado pelo desejo de continuar naquele sonho de descoberta. Apesar de Edinburgh parecer uma cidade bastante conservadora, está cheia de mistérios, surpresas e muita energia positiva.

“Keep in touch”...

Gemuce
Artista plástico moçambicano em residência em Huntly (Aberdeen share)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Terramoto no Haiti


Para acompanhar a tragédia no Haiti, consultar o blogue do jornal Guardian, aqui. Para quem quiser ajudar, a google tem um guia, aqui.

A pergunta não é: que pode a literatura? Mas sim: que podem os literatos?

A três páginas, apenas a três páginas, do final da novela Noturno do Chile, o narrador afirma: "É assim que se faz literatura no Chile, mas não só no Chile, também na Argentina e no México, na Guatemala e no Uruguai, e na Espanha, na França e na Alemanha, e na verde Inglaterra, e na alegre Itália. Assim se faz literatura". É demolidora esta afirmação. Ela encerra a história ancestral da relação de comprometimento de muitos intelectuais, escritores, artistas, com o despotismo, o fascismo, a repressão. Neste livro, esta relação de comprometimento tem o seu contexto no Chile da ditadura de Pinochet e da junta militar, mas ela alastra-se à história dos intelectuais ocidentais. Um jovem padre de sólida formação intelectual clássica, crítico literário, poeta, professor, que leu todos os cânones da literatura e da filosofia ocidental, que viajou pela Europa herdeira do renascimento, do iluminismo, dos modernismos, vê-se, em determinada altura, constrangido a dar aulas de Marxismo a Pinochet e à Junta Militar. Entre o absurdo da situação e o despudor com que a aceita, há todo um mundo de acontecimentos de que permanentemente se alheia: "... Lafourcade publicou palomita blanca, fiz uma boa critica, quase uma glosa triunfal, embora no fundo eu soubesse que era um romancinho que não valia nada, organizou-se a primeira marcha das panelas contra Allende, (...) houve atentados, li Tucídides, as longas guerras de Tucídides (...), também reli Demóstenes, Menandro, Aristóteles e Platão (que sempre é proveitoso), houve greves, (...) depois mataram o ajudante de ordens naval de Allende, houve distúrbios, (...) depois veio o golpe de estado, o levante, o pronunciemiente militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Então eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz." Acabará por beneficiar da sua situação de professor de Pinochet e depois envolver-se em tertúlias literárias numa casa que, se saberá depois, ser um lugar de interrogatório e de tortura da policia política da ditadura. Já velho, remomoriza toda a sua vida. O mais grave não é ter sido cúmplice de Pinochet, o mais grave, sabe-o bem, é ter fingido que a sua actuação não era política. Como hoje, aliás, a acontece a muitos outros intelectuais : "e depois se desencadeia a tormenta de merda", última frase do livro.

Noturno do Chile, de Roberto Bolaño (2000) tradução de Eduardo Brandão. SP: Companhia das Letras, 2004

apr

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

"mi boca junto a tu boca, paloma"



Para ilustrar este verso, cantado por Violeta Parra, Pina Bausch criou movimentos que tornam como el musguito en la piedra, ay, si, si, si, esta sua última peça, uma das de maior enamoramento do seu reportório. Mas esta é também a mais ondulada, a mais curvilínea, a mais horizontal peça da coreógrafa alemã. E podemos continuar, e dizer que ela é também a mais melancólica, a mais onírica, fantasista e nostálgica peça de Pina. E que nela se retrata o Chile, onde a coreógrafa esteve em residência em Fevereiro de 2009, para criar esta obra estreada pela primeira vez, cinco dias apenas antes do seu súbito falecimento. Os materiais que utilizou são o feno, cordas, água, madeira, fruta, ramos de árvores secas onde as mulheres penduram os cabelos. A música são canções do reportório chileno de amor e luta, entrecurtadas com batidas que se ouvem nas discotecas chilenas, como em qualquer discoteca de qualquer parte do mundo. O Chile está presente com seus cavalos, o mar, as batatas, o vento e nas cenas de sedução, joviais e muito físicas. Bailarinos disputam entre si as mulheres. Confrontam-se. Os mais velhos correm atrás da juventude dos mais novos. Mas, são as mulheres o tema desta peça. Num cenário negro, praticamente despido de qualquer cenografia ou adereço, as mulheres são luminosas. Dançam e são solares em seus vestidos floridos, de vermelho, amarelo, carmim e azul ultramarino estampados. São belas com seus cabelos longos, um dos instrumentos coreográficos de Pina quando queria impor a autoridade feminina, o seu poder de sedução ou de punição. São sempre luminosas, até mesmo nos raríssimos momentos em que o poder masculino se lhes impõe, mas jamais como nas antológicas cenas de humilhação de outras peças mais antigas. Aqui é o vento e o amor que prevalecem. Uma mulher pode rolar no chão, atravessando o palco com uma almofada branca, como se vivesse uma noite de insónia, mas a cena que se lhe segue é de júbilo. E voltam as canções de Violeta Parra e as palavras de Ronald Kay, poeta chileno com quem Pina viveu os últimos anos da sua vida, e que poderá não ter sido alheio a esta delicada e antológica sequência de algumas das melhores canções e poemas do reportório do Chile. A peça vive da sabedoria invulgar e única que a coreógrafa tinha na composição e combinação de cenas de grupo intercaladas com solos e duetos. Nesta peça, as cenas de grupo são muito bailadas e parecem movidas como remoinhos na mais clássica composição labaniana, e os solos são invulgarmente longos e diferenciados na suas qualidades de movimentos. Pina Bausch ofereceu a todos seus bailarinos - como nunca o tinha feito - o tempo, a originalidade, o tipo de energia, a definição da cena que cada um quis criar. Agora que ela já não sobe ao palco vestida de negro para agradecer - como habitualmente fazia- o palco é todo para os seus bailarinos, maravilhosos.

apr

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Literatura febril e paulista

O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli (S. Paulo, 1964), é uma obra que parece resultar de uma atitude de escrita automática, sem qualquer instância intermediária que a filtre, componha ou exercite. E, contudo, não é verdade. Esta ilusão estilística provém de um grande treino anterior do escritor, autor de várias obras de relevo de banda desenhada ou, como se diz no Brasil, de livros de quadrinhos. As frases são curtas, sincopadas, marcadas pelo recurso a onomatopeias e onde a função pragmática da linguagem é uma constante. O próprio aspecto gráfico das páginas evoca esse universo da literatura gráfica característico da BD. O Cheiro do Ralo relata o quotidiano do dono e único empregado de balcão de uma loja de penhores num universo urbano, cujos clientes são as figuras dos aflitos que a procuram pelas razões mais diversas. Como particularidade, esta loja tem um ralo (pia) entupido de onde sai um odor nauseabundo, que se intensifica sempre que as situações de tensão vividas pelo protagonista mais evidentes se tornam. É excelente esta metáfora urbana da condição de vida de um abandonado/homem só, cuja rotina diária se faz entre a mal-cheirosa loja, um quiosque de comida rápida e a sua casa, onde adormece fazendo zapping defronte da televisão. O insólito desta narrativa, escrita num ritmo avassalador, possessivo e febril, passa por uma ironia sofisticada, onde a evocação de obras maiores da literatura serve como inserts e os trechos sobre as fantasias sexuais são da autoria de “insuspeitas” personagens. O Cheiro do Ralo – adaptado ao cinema em 2006 - é um dos títulos interessantes da nova literatura brasileira e paulista.

Editora Devir Livraria, S. Paulo, 2002,

Do autor podem ser lidas várias obras de BD, uma das quais – O Rei do Ponto – foi premiada no 11º Festival de BD da Amadora

domingo, 10 de janeiro de 2010

Duas ruas em Lisboa


Talvez tenha a ver com os horários da biografia do quotidiano ou com a topografia das horas, mas subitamente dou-me a cismar sobre duas ruas particulares das mitologias que os anos – e a cidade – me foram erguendo.

As ruas nunca são particulares, naturalmente. Apenas nos apropriamos delas à medida que as reconhecemos e elas nos reconhecem a nós.

Talvez a Rua da Escola Politécnica seja a da velocidade indiferente do dia. A elegante via que corro para aceder à cidade. As janelas que passam por mim, um pouco desprendidas no seu viver-habitualmente burguês. Outrora vaidosamente burguês. Talvez seja uma mulher, elegante e luminosa, por quem passo sem grande atenção, ensimesmado nos negócios do dia.

Talvez a Rua do Século seja a da hora crepuscular. Nocturna, pesada, avenida que traz a noite. Que me carrega os passos indecisos e trocados, pelas dúvidas do dia que se vertem na noite, ou pelo fino álcool que se atravessa. São pedras mais duras. Palácios de um poder antigo. Palácios renunciados, alguns desolados, de um poder agora frouxo. Pedras mais escuras. Muros reflexo dos candeeiros falsamente nostálgicos que intermitentemente iluminam. Servirá de grande consolo re-conhecer que depois de mim lá persistirão as mesmas inamovíveis nocturnas pedras?

Sobram sempre as cidades.

João Amaro Correia
Arquitecto

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A Ilha


Uma linha recta. Um traço fino. Divide? Não. Une. O continente e a Ilha.

Azul turquesa líquido. Branco areia fina. Casa de macúti, casa de pedra e cal. A costa, a contra costa, o omnipresente Indico. O hospital, a praça, a casa da flor, o forte, as arcadas. O Arsenal gigantesco, um escudo na fachada.

Mussa Al Mbique. Camões. Xavier. Fatimah. Pedro. Oxi. Nazira. Gabriel. Rino. Felismino.



“Quero ser arquitecto, como o Alexandre que trabalha na UNESCO.” Disse o menino.

A porta aberta. O contra luz. Um retrato a preto e branco. A mão tapa o sorriso. A máscara de pó branco. Mussiro. O riso. A dança. Cheira a sal. Turista. O barco. As ilhas. Mais praia. Água morna. Missangas. Vidros. Corais. Moedas. Muito antigas. Mais risos.

“Não há cães na ilha. Abateram-se 52 cães vadios.” Passeia um gato.

Sol aberto. Céu celeste. Luz. Silêncio. Silêncio e luz. Calor. Quase lume. Proteger a pele. Branca. Negra. Quantos quartos tem este pátio? Um véu que desenha os olhos. Descalçar. Voz de chamada. Ouvi um sino. O por do sol. A madrugada. Ventania. Silêncio e ventania. Mesquita verde. Igreja branca.

Deus. Uma linha recta. Um traço fino. Divide? Não. Une.

Elisa Santos
Missionária/Técnica em actividades de desenvolvimento comunitário



P.S. A Ilha de Moçambique tem cerca de 3 km de comprimento, 300-400 m de largura e está orientada no sentido nordeste-sudoeste à entrada da Baía de Mossuril na província de Nampula. Foi a primeira capital de Moçambique e desde 1991 é Património da Humanidade. Decorrem obras de reabilitação que contam com o apoio da UNESCO e o Forte de S. Sebastião deverá acolher em breve uma universidade.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Gaborone

População: 186,007 (censo de 2001)

Área: 19,6 Km²

A 1014 m de altitude, no centro da África Austral, vive uma cidade jardim que dá para o céu. Se cada cidade tem um sotaque, Gaborone tem os “erres” muito fortes: o próprio nome da cidade, dita Raborone, a palavra senhor, rra, passando esta forte pronúncia também para o inglês.


Elevada a capital um ano antes da independência (1965), devido à proximidade de água ali existente, disfruta de Pula – chuva, dinheiro, brindes – até à exaustão. A riqueza é-lhe dada pelos diamantes e pela criação de gado, a chuva só a trechos, e os brindes todos os fins-de-semana, de sexta a domingo, nos bares da cidade ou em festas oficiais e privadas.

Mas depois da festa vem o cansaço, que se pode ver no modo de andar lento e pacato dos seus habitantes, expostos a temperaturas extremas durante todo o ano, que oscilam entre os 5 e os 45 graus.

Cidade de terra vermelho ocre, com odor de deserto, pela distância que a avizinha do Kgalagadi, a sensação de infinito vai-a buscar ao céu, de um azul límpido, pontilhado de nuvens curiosas, e o contrabaixo contínuo ao verde que a acompanha e atravessa em todas as direcções.

A música é um elemento constante em toda a cidade, seja a que irrompe da loja chinesa de Broadhurst aos sábados – com um cantor, de microfone na mão, que serve de chamariz para os compradores distraídos – seja o African Pop, Afro Techno ou Kwasa-Kwaito (mistura entre o Kwasa Kwasa congolês e o Kwaito sul-africano) que ecoa pelo Main Mall a qualquer hora do dia, ou ainda a que se evapora das igrejas zionistas, a que se murmura nos pequenos bairros dos muitos zimbabweanos que sonham um dia poder regressar e nas festas da comunidade cubana. Também as combis (transporte semi-colectivo), num delirante vaivém, transpiram a música, depois da pausa feita para o pagamento dos 3 Pulas de tarifa.

O poeta contemporâneo Tiro Sebina foi quem melhor conseguiu captar a atmosfera da cidade no seu poema "Gaborone".

Sandra Pires
Leitora do Instituto Camões no Botswana

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Joanesburgo

                               

Like a net; Egoli collects the brightest stars of the dark constellation, coming to chip away at her gold and seeking her diamonds

Its beacon of light: the coke tower, now the vodacom tower with its prostitutes, and hustlers, Joburg proudly displays her disparities, even in the scenic Joubert Park with its whites only benches and likewise drinking fountains.

My mother told me stories of batoned police keeping the peace in the town centre. I remember riot police, enforcing the law, and keeping the pavements safe. Back then there were no street vendors from Ghana and Mozambique selling roots and herbs, or Chinese traders vending golden watches and sunglasses.

Like a magnet Jozi transfixes the country bumpkin, fresh off the train and teaches him to wield a knife, as he slips into the seat of his newly acquired German-crafted, four-wheeled status symbol. Oranges, pears, bananas, and avocados tumble to the ground as a father of four looses his pulse in the wake of Jakes and his crews´ scrambling feet-cuoshioned in the high stepping bright white All Star trainers; as red syrup seeps in to the concrete sidewalk.

Deeper and deeper below, the sound of the pneumatic drill comes to an abrupt halt as an army of sixteen blackened faces burrows further in search of a slight twinkle in the dark. Their black voices beat on the army of white ear drums above with their hands on their hips.

In the Newtown District, the new generation, the first generation, of black-diamonds* sips cocktails, and strokes silk-clad thighs, while signing million rand contracts in the full glory of the African sun. They... we, smile, and the African sky smiles back. After all we are the new precious article of this Southern Africa Capital. The new kings and queens driving capital and industry on the very streets where our grandparents drove wheel barrows. We spit instructions in English, Sotho, and Venda, while receiving concurrence in Afrikaans, Xhosa and the almighty Zulu.

On either end; Alexandra and the infamous Soweto townships buttress this powerhouse of African modernity. In these outskirts of Johannesburg the young and old continue the waiting game for fathers and mothers to return to these battlegrounds where dreams are dashed and schemes realised.

Jabulani Maseko

* A marketing term describing the group of young black (not including Indians or coloureds) South Africans who make up the middle class (well-educated, wealthy, salaried, in suitable employment, creditworthy, property and car owners, aspirant, with confidence in themselves and in the future).

Fotografia:
Jabulani Maseko
Afrovova